quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Intervalos


Sento calmamente na minha poltrona favorita na sala silenciosa no início da madrugada. Recosto a cabeça e abro com um prazer calculado o livro que me aguarda na mesa ao lado. Paro uns instantes para apreciar a tranqüilidade a minha volta e quase esqueço de voltar. 
Ainda no início da leitura do segundo parágrafo, um choro agudo e cortante me retira abruptamente do meu devaneio. Levanto com a velocidade de um raio, saindo do status de descanso para o de movimento só como uma mãe é capaz de fazer, e me dirijo ao quartinho lilás ao lado do meu. Pego-a no colo, devolvo-lhe a chupeta, aninho-a em meu peito e o silêncio volta a reinar. Faço uma prece mental para que esse seja o último choro da noite. “Só por hoje, só por hoje”- me pego repetindo baixinho como uma exausta anônima. Preciso desesperadamente relaxar.
Retorno calmamente ao mundo em que eu estava. Por uns instantes fulgazes reencontro a paz e fujo para longe, onde nem meus pensamentos me alcançam mais. Subitamente o telefone vibra ao meu lado e me traz de volta a realidade. Atendo-o, assustada. Minha mãe, preocupada, pergunta, do outro lado, porque eu não liguei ao chegar em casa como prometido. “Aconteceu alguma coisa?” a ansiedade jorrando da voz. Bufo, como que repreendendo a mim mesma. Sequer me lembro da promessa feita provavelmente no meio do dia enquanto estava ocupada com todas as outras infinitas coisas que me assaltam diariamente. “Todos estão bem, mãe, fique tranqüila, vá dormir”.
Desligo o telefone, sigo até a cozinha e tomo um gole d´água antes de voltar ao livro que me aguarda paciente e praticamente intocado em cima da mesa.
Mal começo a folheá-lo, um vulto aparece na porta com o pijama vestido do avesso, fitando-me com os olhos sonolentos e pergunta, afetuoso: “Você não vem dormir?”
Suspiro. Desisto. E sigo-o na penumbra pelo corredor.

 

 

Sinais Vitais


Foi Carlinhos quem me abriu os olhos para a realidade. Carlos Drummond de Andrade, conhece? Em um famoso poema chamado “casa arrumada” ele diz que a casa da gente não é vitrine para estar sempre impecavelmente arrumada, que casa que tem amigos tem marca de copo na mesa, e arranhão no chão. E tem mesmo. Se for casa com criança pequena, então, aí tem parede riscada, brinquedo em cada canto, sofá manchado...E que seja de lápis de cera, ao invés de cigarro, penso eu.
Não é só a casa da gente que tem que ter vida, ser pulsante, carregar marcas. Todos nós temos as nossas cicatrizes, que andam rigorosamente escondidas, mas, depois do salvo conduto de Carlinhos, podem e devem ser alforriadas, são elas que nos dão charme e nos fazem ser quem somos. Precisamos, nós também, carregar nossa história na pele.
Eu já achava estranho, e agora me veio a certeza, mulheres que mais parecem que saíram de capas de revistas ou das passarelas não são reais, são mulheres vitrines, sem uma única sardinha de sol no nariz para contar história de algum verão inesquecível, ou uma ruguinha, que traz um charme experiente aos olhos ainda brilhantes de menina. Uma gordurinha aqui e acolá, que não comprometem o visual não deixam dúvida: essa aí gosta de reunir quem ama ao redor de uma boa mesa. Se os dentes já não são mais brancos como antigamente, não dá para enganar: essa outra adora um vinho e de preferência na companhia dos amigos. Se reclama muito da coluna, é batata: tem filho pequeno, que ela ainda carrega no colo...
Mulher de verdade é assim, veste seus defeitos como se fossem predicados. Drummond certamente concordaria comigo...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Réveillon

Todo ano saio em busca da reconstrução pessoal, de invadir os escombros da alma atrás de pedaços intactos de mim. Visto-os com dignidade, minha farda e meu escudo. E me despeço dos destroços, objetos inanimados que pesam sobre os ombros e que não me protegem mais, nem de mim mesma.
Calço minhas botas, apanho minha bagagem, e finjo sorrir. Preciso mostrar ânimo para os dias que virão. Quero acreditar que serão diferentes, que, como diz a música, tudo mudou.
A passos largos, observo o que deixei para trás, e num misto de alegria e solidão, vejo que estou sozinha, eu, minha farda, e minha trouxa de passado. Parece mais leve que a do ano passado, mas ao empunhá-la nas costas, vejo que ainda há resquícios daquela que nem existe mais. Paro novamente e abro sem hesitação: retiro tralhas e tralhas, jogo ao chão mais pedaços de mim que não uso mais, tantos que uma nova versão me encara no piso frio com um ar desolado. Não recuo. Sigo em frente e deixo-a esquecida atrás de mim. Agora sim, estou mais leve.
Tomo coragem e saio correndo, em frente, sem medo, e mergulho no ano que me espera. Cheia de sonhos, e um tanto otimista. Sibilo uma promessa de ano novo: sem trouxa nas costas no ano que vem.